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Web provisoria da ANOVA - Irmandade Nacionalista, constituída o pasado sábado 14 de xullo en Compostela e recollendo logo de 223 anos os ideais de liberdade, fraternidade e igualdade da Revolución Francesa.
A toxicidade en persoas e fauna das fumigacións aéreas da Xunta
Liga Estudantil Galega
Interesante artigo de Boaventura de Sousa Santos
Grupo de Traballo de Mocidade do EI
18/11/2011
Manifesto dos economistas aterrorizados
Aparentemente,
o autismo dos economistas da corrente dominante começa a ser abalado
pela presente crise do capitalismo. Este manifesto da Associação
Francesa de Economia Política é um indício de uma inquietação
que começa a aflorar. Entretanto, os signatários ainda estão longe
de uma ruptura radical com o pensamento dominante e, menos ainda, de
preconizar uma ruptura com o capitalismo – pretendem apenas
consertá-lo e parecem acreditar que isso seria possível. O que os
aterroriza são os piores excessos do neoliberalismo e não o
capitalismo. As reformas que preconizam estão longe de serem uma
panaceia e a sua exequibilidade parece duvidosa sob a actual
correlação de forças, ou seja, sob a quase absoluta ditadura do
capital financeiro. A presente publicação neste sítio destina-se a
documentar uma incomodidade (louvável) que agora começa a afectar
economistas não marxistas.
Associação
Francesa de Economia Política (AEFP)
Manifesto
dos economistas aterrorizados
Crise e Dívida na Europa:
10
falsas evidências, 22 medidas em debate para sair do impasse
Philippe
Askenazy (CNRS,
Ecole d'économie de Paris), Thomas
Coutrot (Conselho
Científico da Attac), André
Orléan (CNRS,
EHESS, Presidente da AFEP), Henri
Sterdyniak (OFCE)
Introdução
A
retoma económica mundial, que foi possível graças a uma injecção
colossal de fundos públicos no circuito económico (desde os Estados
Unidos à China) é frágil, mas real. Apenas um continente continua
em retracção, a Europa. Reencontrar o caminho do crescimento
económico deixou de ser a sua prioridade política. A Europa decidiu
enveredar por outra via, a da luta contra os défices públicos.
"Na União Europeia, estes défices são de facto
elevados – 7% em média em 2010 – mas muito inferiores aos 11%
dos Estados Unidos. Enquanto alguns estados norte-americanos com um
peso económico mais relevante do que a Grécia (como a Califórnia,
por exemplo), se encontram numa situação de quase falência, os
mercados financeiros decidiram especular com as dívidas soberanas de
países europeus, particularmente do Sul. A Europa, de facto,
encontra-se aprisionada na sua própria armadilha institucional: os
Estados são obrigados a endividar-se nas instituições financeiras
privadas que obtêm injecções de liquidez, a baixo custo, do Banco
Central Europeu (BCE). Por conseguinte, os mercados têm em seu poder
a chave do financiamento dos Estados. Neste contexto, a ausência de
solidariedade europeia incentiva a especulação, ao mesmo tempo que
as agências de notação apostam na acentuação da desconfiança.
Foi necessário que a agência Moody baixasse a notação da
Grécia, a 15 de Junho, para que os dirigentes europeus
redescobrissem o termo "irracionalidade", a que tanto
recorreram no início da crise do subprime.
Da
mesma forma que agora se descobre que a Espanha está muito mais
ameaçada pela fragilidade do seu modelo de crescimento e do seu
sistema bancário do que pela sua dívida pública."
Para
"tranquilizar os mercados" foi improvisado um Fundo de
Estabilização do euro e lançados, por toda a Europa, planos
drásticos – e em regra cegos – de redução das despesas
públicas. As primeiras vítimas são os funcionários públicos,
como sucede em França, onde a subida dos descontos para as suas
pensões corresponderá a uma redução escondida dos seus salários,
encontrando-se o seu número a diminuir um pouco por toda a parte,
pondo em causa os serviços públicos. Da Holanda a Portugal,
passando pela França com a actual reforma das pensões, as
prestações sociais estão em vias de ser severamente amputadas. Nos
próximos anos, o desemprego e a precariedade do emprego vão
seguramente aumentar. Estas medidas são irresponsáveis de um ponto
de vista político e social, mas também num plano estritamente
económico.
Esta política, que apenas muito provisoriamente
acalmou a especulação, teve já consequências extremamente
negativas em muitos países europeus, afectando de modo particular a
juventude, o mundo do trabalho e as pessoas em situação de maior
fragilidade. A longo prazo, esta política reactivará as tensões na
Europa e ameaçará por isso a própria construção europeia, que é
muito mais do que um projecto económico. Supõe-se que a economia
esteja ao serviço da construção de um continente democrático,
pacífico e unido. Mas em vez disso, uma espécie de ditadura dos
mercados é hoje imposta por toda a parte, particularmente em
Portugal, Espanha e Grécia, três países que eram ditaduras no
início da década de setenta, ou seja, há apenas quarenta anos.
Quer se interprete como um desejo de "tranquilizar os
mercados", por parte de governantes assustados, quer se
interprete como um pretexto para impor opções ditadas pela
ideologia, a submissão a esta ditadura não é aceitável, uma vez
que já demonstrou a sua ineficácia económica e o seu potencial
destrutivo no plano político e social. Um verdadeiro debate
democrático sobre as escolhas de política económica deve pois ser
aberto, em França e na Europa. A maior parte dos economistas que
intervém no debate público, fazem-no para justificar ou
racionalizar a submissão das políticas às exigências dos mercados
financeiros. É certo que, um pouco por toda a parte, os poderes
públicos tiveram que improvisar planos keynesianos de relançamento
da economia e, por vezes, chegaram inclusive a nacionalizar
temporariamente os bancos. Mas eles querem fechar, o mais rapidamente
possível, este parêntese. A lógica neoliberal é sempre a única
que se reconhece como legítima, apesar dos seus evidentes fracassos.
Fundada na hipótese da eficiência dos mercados financeiros,
preconiza a redução da despesa pública, a privatização dos
serviços públicos, a flexibilização do mercado de trabalho, a
liberalização do comércio, dos serviços financeiros e dos
mercados de capital, por forma a aumentar a concorrência em todos os
domínios e em toda a parte…
Enquanto economistas,
aterroriza-nos constatar que estas políticas continuam a estar na
ordem do dia e que os seus fundamentos teóricos não sejam postos em
causa. Mas os factos trataram de questionar os argumentos utilizados
desde há trinta anos para orientar as opções das políticas
económicas europeias. A crise pôs a nu o carácter dogmático e
infundado da maioria das supostas evidências, repetidas até à
saciedade por aqueles que decidem e pelos seus conselheiros. Quer se
trate da eficiência e da racionalidade dos mercados financeiros, da
necessidade de cortar nas despesas para reduzir a dívida pública,
quer se trate de reforçar o "pacto de estabilidade", é
imperioso questionar estas falsas evidências e mostrar a pluralidade
de opções possíveis em matéria de política económica. Outras
escolhas são possíveis e desejáveis, com a condição de libertar,
desde já, o garrote imposto pela indústria financeira às políticas
públicas.
Procedemos de seguida a uma apresentação crítica
de dez postulados que continuam a inspirar, dia após dia, as
decisões dos poderes públicos em toda a Europa, apesar dos
lancinantes desmentidos que a crise financeira e as suas
consequências nos revelam. Trata-se de falsas evidências, que
inspiram medidas injustas e ineficazes, perante as quais expomos
vinte e duas contrapropostas para debate. Cada uma delas não reúne
necessariamente a concordância unânime dos signatários deste
manifesto, mas deverão ser levadas a sério, caso se pretenda
resgatar a Europa do impasse em que neste momento se encontra.
Falsa evidência n.º 1:
OS
MERCADOS FINANCEIROS SÃO EFICIENTES
Existe
hoje um facto que se impõe a todos os observadores: o papel
primordial que desempenham os mercados financeiros no funcionamento
da economia. Trata-se do resultado de uma longa evolução, que
começou nos finais da década de setenta. Independentemente da forma
como a possamos medir, esta evolução assinala uma clara ruptura,
tanto quantitativa como qualitativa, em relação às décadas
precedentes. Sob a pressão dos mercados financeiros, a regulação
do capitalismo transformou-se profundamente, dando origem a uma forma
inédita de capitalismo, que alguns designaram por "capitalismo
patrimonial", por "capitalismo financeiro" ou, ainda,
por "capitalismo neoliberal".
Estas mudanças
encontraram na hipótese da eficiência informacional dos mercados
financeiros a sua justificação teórica. Com efeito, segundo esta
hipótese, torna-se crucial desenvolver os mercados financeiros e
fazer com que eles possam funcionar o mais livremente possível, dado
constituírem o único mecanismo de afectação eficaz do capital. As
políticas obstinadamente levadas a cabo nos últimos trinta anos
seguem esta recomendação. Trata-se de construir um mercado
financeiro mundialmente integrado, no qual todos os actores
(empresas, famílias, Estados, instituições financeiras) possam
trocar toda a espécie de títulos (acções, obrigações, dívidas,
derivados, divisas), em qualquer prazo (longo, médio e curto). Os
mercados financeiros assemelharam-se cada vez mais ao mercado "sem
fricção", de que falam os manuais: o discurso económico
convertera-se em realidade. Como os mercados se tornaram cada vez
mais "perfeitos", no sentido da teoria económica
dominante, os analistas acreditaram que doravante o sistema
financeiro passaria a ser muito mais estável que no passado. A
"grande moderação" – o período de crescimento
económico sem subida dos salários, que os Estados Unidos conheceram
entre 1990 e 2007 – parecia confirmá-lo.
Apesar de tudo o
que aconteceu, o G20 persiste ainda hoje na ideia de que os mercados
financeiros constituem o melhor mecanismo de afectação do capital.
A primazia e integridade dos mercados financeiros continuam por isso
a ser os objectivos finais da nova regulação financeira. A crise é
interpretada não como o resultado inevitável da lógica dos
mercados desregulados, mas sim como um efeito da desonestidade e
irresponsabilidade de certos actores financeiros, mal vigiados pelos
poderes públicos.
A crise, porém, encarregou-se de
demonstrar que os mercados não são eficientes e que não asseguram
uma afectação eficaz do capital. As consequências deste facto em
matéria de regulação e de política económica são imensas. A
teoria da eficiência assenta na ideia de que os investidores
procuram (e encontram) a informação mais fiável possível quanto
ao valor dos projectos que competem entre si por financiamento.
Segundo esta teoria, o preço que se forma num mercado reflecte a
avaliação dos investidores e sintetiza o conjunto da informação
disponível: constitui, portanto, um bom cálculo do verdadeiro valor
dos activos. Ou seja, supõe-se que esse valor resume toda a
informação necessária para orientar a actividade económica e,
desse modo, a vida social. O capital é, portanto, investido nos
projectos mais rentáveis, deixando de lado os projectos menos
eficazes. Esta é a ideia central da teoria: a concorrência
financeira estabelece preços justos, que constituem sinais fiáveis
para os investidores, orientando eficazmente o crescimento económico.
Mas a crise veio justamente confirmar o resultado de diversos
trabalhos científicos que puseram esta proposição em causa. A
concorrência financeira não estabelece, necessariamente, preços
justos. Pior: a concorrência financeira é, frequentemente,
destabilizadora e conduz a evoluções de preços excessivas e
irracionais, as chamadas bolhas financeiras.
O principal erro
da teoria da eficiência dos mercados financeiros consiste em
transpor, para os produtos financeiros, a teoria usualmente aplicada
aos mercados de bens correntes. Nestes últimos, a concorrência é
em parte auto-regulada, em virtude do que se chama a "lei"
da oferta e da procura: quando o preço de um bem aumenta, os
produtores aumentam a sua oferta e os compradores reduzem a procura;
o preço baixa e regressa, portanto, ao seu nível de equilíbrio.
Por outras palavras, quando o preço de um bem aumenta, existem
forças de retracção que tendem a inverter essa subida. A
concorrência produz aquilo a que se chama "feedbacks
negativos", forças de retracção que vão em sentido contrário
ao da dinâmica inicial. A ideia da eficiência nasce de uma
transposição directa deste mecanismo para o mercado financeiro.
Mas neste último caso a situação é muito diferente.
Quando o preço aumenta é frequente constatar não uma descida mas
sim um aumento da procura! De facto, a subida de preço significa uma
rentabilidade maior para aqueles que possuem o título, em virtude
das mais-valias que auferem. A subida de preço atrai portanto novos
compradores, o que reforça ainda mais a subida inicial. As promessas
de bónus incentivam os que efectuam as transacções a ampliar ainda
mais o movimento. Até ao acidente, imprevisível mas inevitável,
que provoca a inversão das expectativas e o colapso. Este fenómeno,
digno da miopia dos "borregos de Panurge" [1]
, é um processo de "feedbacks positivos" que agrava os
desequilíbrios. É a bolha especulativa: uma subida acumulada dos
preços que se alimenta a si própria. Deste tipo de processo não
resultam preços justos mas sim, pelo contrário, preços
inadequados.
O lugar preponderante que os mercados
financeiros ocupam não pode, portanto, conduzir a eficácia alguma.
Mais do que isso, é uma fonte permanente de instabilidade, como
demonstra de forma clara a série ininterrupta de bolhas que temos
vindo a conhecer desde há vinte anos: Japão, Sudeste Asiático,
Internet, mercados emergentes, sector imobiliário, titularização.
A instabilidade financeira traduz-se assim em fortes flutuações das
taxas de câmbio e da Bolsa, que manifestamente não têm qualquer
relação com os fundamentos da economia. Esta instabilidade, nascida
no sector financeiro, propaga-se a toda a economia real através de
múltiplos mecanismos.
Para reduzir a ineficiência e
instabilidade dos mercados financeiros, avançamos com quatro
medidas:
Medida
n.º 1: Limitar,
de forma muito estrita, os mercados financeiros e as actividades dos
actores financeiros, proibindo os bancos de especular por conta
própria, evitando assim a propagação das bolhas e dos colapsos;
Medida
n.º 2: Reduzir
a liquidez e a especulação destabilizadora através do controle dos
movimentos de capitais e através de taxas sobre as transacções
financeiras;
Medida
n.º 3: Limitar
as transacções financeiras às necessidades da economia real (por
exemplo, CDS unicamente para quem possua títulos segurados, etc.);
Medida n.º 4: Estabelecer tectos para as remunerações dos operadores de transacções financeiras.
Falsa evidência n.º 2:
OS
MERCADOS FINANCEIROS FAVORECEM O CRESCIMENTO ECONÓMICO
A
integração financeira conduziu o poder da finança ao seu zénite,
na medida em que ela unifica e centraliza a propriedade capitalista à
escala mundial. Daí em diante, é ela quem determina as normas de
rentabilidade exigidas ao conjunto dos capitais. O projecto consistia
em substituir o financiamento bancário dos investidores pelo
financiamento através dos mercados de capitais. Projecto que
fracassou porque hoje, globalmente, são as empresas quem financia os
accionistas, em vez de suceder o contrário. Consequentemente, a
governação das empresas transformou-se profundamente para atingir
as normas de rentabilidade exigidas pelos mercados financeiros. Com o
aumento exponencial do valor das acções, impôs-se uma nova
concepção da empresa e da sua gestão, pensadas como estando ao
serviço exclusivo dos accionistas. E desapareceu assim a ideia de um
interesse comum inerente às diferentes partes, vinculadas à
empresa. Os dirigentes das empresas cotadas em Bolsa passaram a ter
como missão primordial satisfazer o desejo de enriquecimento dos
accionistas. Por isso, eles mesmos deixaram de ser assalariados, como
denota o galopante aumento das suas remunerações. De acordo com a
teoria da "agência", trata-se de proceder de modo a que os
interesses dos dirigentes estejam alinhados com os interesses dos
accionistas.
Um ROE ( Return
on Equity ou
rendimento dos capitais próprios) de 15% a 25% passa a constituir a
norma que impõe o poder da finança às empresas e aos assalariados
e a liquidez é doravante o seu instrumento, permitindo aos capitais
não satisfeitos, a qualquer momento, ir procurar rendimentos noutro
lugar. Face a este poder, tanto os assalariados como a soberania
política ficam, pelo seu fraccionamento, em condição de
inferioridade. Esta situação desequilibrada conduz a exigências de
lucros irrazoáveis, na medida em que reprimem o crescimento
económico e conduzem a um aumento contínuo das desigualdades
salariais. Por um lado, as exigências de lucro inibem fortemente o
investimento: quanto mais elevada for a rentabilidade exigida, mais
difícil se torna encontrar projectos com uma performance
suficientemente eficiente para a satisfazer. As taxas de investimento
fixam-se assim em níveis historicamente débeis, na Europa e nos
Estados Unidos. Por outro lado, estas exigências provocam uma
constante pressão para a redução dos salários e do poder de
compra, o que não favorece a procura. A desaceleração simultânea
do investimento e do consumo conduz a um crescimento débil e a um
desemprego endémico. Nos países anglo-saxónicos, esta tendência
foi contrariada através do aumento do endividamento das famílias e
através das bolhas financeiras, que geram uma riqueza assente num
crescimento do consumo sem salários, mas que desemboca no colapso.
Para superar os efeitos negativos dos mercados financeiros
sobre a actividade económica, colocamos em debate três medidas:
Medida
n.º 5: Reforçar
significativamente os contra-poderes nas empresas, de modo a obrigar
os dirigentes a ter em conta os interesses do conjunto das partes
envolvidas;
Medida
n.º 6: Aumentar
fortemente os impostos sobre os salários muito elevados, de modo a
dissuadir a corrida a rendimentos insustentáveis;
Medida n.º 7: Reduzir a dependência das empresas em relação aos mercados financeiros, incrementando uma política pública de crédito (com taxas preferenciais para as actividades prioritárias no plano social e ambiental).
Falsa evidência n.º 3:
OS
MERCADOS SÃO BONS JUIZES DO GRAU DE SOLVÊNCIA DOS ESTADOS
Segundo
os defensores da eficiência dos mercados financeiros, os operadores
de mercado teriam em conta a situação objectiva das finanças
públicas para avaliar o risco de subscrever um empréstimo ao
Estado. Tomemos o exemplo da dívida grega: os operadores
financeiros, e todos quantos tomam as decisões, recorreram
unicamente às avaliações financeiras para ajuizar sobre a
situação. Assim, quando a taxa exigida à Grécia ascendeu a mais
de 10%, cada um deduziu que o risco de incumprimento de pagamento
estaria próximo: se os investidores exigem tamanho prémio de risco
é porque o perigo é extremo.
Mas há nisto um profundo
erro, quando compreendemos a verdadeira natureza das avaliações
feitas pelos mercados financeiros. Como não é eficiente, o mais
provável é que apresente preços completamente desconectados dos
fundamentos económicos. Nessas condições, é irrazoável entregar
unicamente às avaliações financeiras a análise de uma dada
situação. Atribuir um valor a um título financeiro não é uma
operação comparável a medir uma proporção objectiva, como por
exemplo calcular o peso de um objecto. Um título financeiro é um
direito sobre rendimentos futuros: para o avaliar é necessário
prever o que será o futuro. É uma questão de valoração, não uma
tarefa objectiva, porque no instante t
o
futuro não se encontra de nenhum modo predeterminado. Nas salas de
mercado, as coisas são o que os operadores imaginam que venham a
ser. O preço de um activo financeiro resulta de uma avaliação, de
uma crença, de uma aposta no futuro: nada assegura que a avaliação
dos mercados tenha alguma espécie de superioridade sobre as outras
formas de avaliação.
A avaliação financeira não é,
sobretudo, neutra: ela afecta o objecto que é medido, compromete e
constrói um futuro que imagina. Deste modo, as agências de notação
financeira contribuem largamente para determinar as taxas de juro nos
mercados obrigacionistas, atribuindo classificações carregadas de
grande subjectividade, contaminadas pela vontade de alimentar a
instabilidade, fonte de lucros especulativos. Quando baixam a notação
de um Estado, as agências de notação aumentam a taxa de juro
exigida pelos actores financeiros para adquirir os títulos da dívida
pública desse Estado e ampliam assim o risco de colapso, que elas
mesmas tinham anunciado.
Para reduzir a influência da
psicologia dos mercados no financiamento dos Estados, colocamos em
debate duas medidas:
Medida
n.º 8: As
agências de notação financeira não devem estar autorizadas a
influenciar, de forma arbitrária as taxas de juro dos mercados de
dívida pública, baixando a notação de um Estado: a sua actividade
deve ser regulamentada, exigindo-se que essa classificação resulte
de um cálculo económico transparente;
Medida n.º 8 (b): Libertar os Estados da ameaça dos mercados financeiros, garantindo a compra de títulos da dívida pública pelo BCE.
Falsa evidência n.º 4:
A
SUBIDA ESPECTACULAR DAS DÍVIDAS PÚBLICAS É O RESULTADO DE UM
EXCESSO DE DESPESAS
Michel
Pébereau, um dos "padrinhos" da banca francesa, descrevia
em 2005, num dos seus relatórios oficiais ad
hoc, uma
França asfixiada pela dívida pública e que sacrificava as suas
gerações futuras ao entregar-se a gastos sociais irreflectidos. O
Estado endividava-se como um pai de família alcoólico, que bebe
acima das suas posses: é esta a visão que a maioria dos
editorialistas costuma propagar. A explosão recente da dívida
pública na Europa e no mundo deve-se porém a outra coisa: aos
planos de salvamento do sector financeiro e, sobretudo, à recessão
provocada pela crise bancária e financeira que começou em 2008: o
défice público médio na zona euro era apenas de 0,6% do PIB em
2007, mas a crise fez com que passasse para 7%, em 2010. Ao mesmo
tempo, a dívida pública passou de 66% para 84% do PIB.
O
aumento da dívida pública, contudo, tanto em França como em muitos
outros países europeus, foi inicialmente moderado e antecedeu esta
recessão: provém, em larga medida, não de uma tendência para a
subida das despesas públicas – dado que, pelo contrário, desde o
início da década de noventa estas se encontravam estáveis ou em
declínio na União Europeia, em proporção do PIB – mas sim à
quebra das receitas públicas, decorrente da debilidade do
crescimento económico nesse período e da contra-revolução fiscal
que a maioria dos governos levou a cabo nos últimos vinte e cinco
anos. A longo prazo, a contra-revolução fiscal alimentou
continuamente a dilatação da dívida, de recessão em recessão. Em
França, um recente estudo parlamentar situa em 100.000 milhões de
euros, em 2010, o custo das descidas de impostos, aprovadas entre
2000 e 2010, sem que neste valor estejam sequer incluídas as
exonerações relativas a contribuições para a segurança social
(30.000 milhões) e outros "encargos fiscais". Perante a
ausência de uma harmonização fiscal, os Estados europeus
dedicaram-se livremente à concorrência fiscal, baixando os impostos
sobre as empresas, os salários mais elevados e o património. Mesmo
que o peso relativo dos factores determinantes varie de país para
país, a subida quase generalizada dos défices públicos e dos
rácios de dívida pública na Europa, ao longo dos últimos trinta
anos, não resulta fundamentalmente de uma deriva danosa das despesas
públicas. Um diagnóstico que abre, evidentemente, outras pistas
para além da eterna exigência de redução da despesa pública.
Para instaurar um debate público informado acerca da origem
da dívida e dos meios de a superar, colocamos em debate uma
proposta:
Medida n.º 9: Efectuar uma auditoria pública das dívidas soberanas, de modo a determinar a sua origem e a conhecer a identidade dos principais detentores de títulos de dívida e os respectivos montantes que possuem.
Falsa evidência n.º 5:
É
PRECISO REDUZIR AS DESPESAS PARA DIMINUIR A DÍVIDA PÚBLICA
Mesmo
que o aumento da dívida pública tivesse resultado, em parte, de um
aumento das despesas públicas, o corte destas despesas não
contribuiria necessariamente para a solução, porque a dinâmica da
dívida pública não tem muito que ver com a de uma casa: a
macroeconomia não é redutível à economia doméstica. A dinâmica
da dívida depende de vários factores: do nível dos défices
primários, mas também da diferença entre a taxa de juro e a taxa
de crescimento nominal da economia.
Ora, se o crescimento da
economia for mais débil do que a taxa de juro, a dívida cresce
mecanicamente devido ao "efeito de bola de neve": o
montante dos juros dispara, o mesmo sucedendo com o défice total
(que inclui os juros da dívida). Foi assim que, no início da década
de noventa, a política do franco forte levada a cabo por Bérégovoy
– e que se manteve apesar da recessão de 1993/94 – se traduziu
numa taxa de juro durante muito tempo mais elevada do que a taxa de
crescimento, o que explica a subida abrupta da dívida pública em
França neste período. Trata-se do mesmo mecanismo que permite
compreender o aumento da dívida durante a primeira metade da década
de oitenta, sob o impacto da revolução neoliberal e da política de
taxas de juro elevadas, conduzidas por Ronald Reagan e Margaret
Thatcher.
Mas a própria taxa de crescimento da economia não
é independente da despesa pública: no curto prazo, a existência de
despesas públicas estáveis limita a magnitude das recessões
("estabilizadores automáticos"); no longo prazo, os
investimentos e as despesas públicas (educação, saúde,
investigação, infra-estruturas…) estimulam o crescimento. É
falso afirmar que todo o défice público aumenta necessariamente a
dívida pública, ou que qualquer redução do défice permite
reduzir a dívida. Se a redução dos défices compromete a
actividade económica, a dívida aumentará ainda mais. Os
comentadores liberais sublinham que alguns países (Canadá, Suécia,
Israel) efectuaram ajustes brutais nas suas contas públicas nos anos
noventa e conheceram, de imediato, um forte salto no crescimento. Mas
isso só é possível se o ajustamento se aplicar a um país isolado,
que adquire novamente competitividade face aos seus concorrentes.
Evidentemente, os partidários do ajustamento estrutural europeu
esquecem-se que os países têm como principais clientes e
concorrentes os outros países europeus, já que a União Europeia
está globalmente pouco aberta ao exterior. Uma redução simultânea
e maciça das despesas públicas, no conjunto dos países da União
Europeia, apenas pode ter como consequência uma recessão agravada
e, portanto, uma nova subida da dívida pública.
Para evitar
que o restabelecimento das finanças públicas provoque um desastre
social e político, lançamos para debate duas medidas:
Medida
n.º 10: Manter
os níveis de protecção social e, inclusivamente, reforçá-los
(subsídio de desemprego, habitação…);
Medida n.º 11: Aumentar o esforço orçamental em matéria de educação, de investigação e de investimento na reconversão ecológica e ambiental…tendo em vista estabelecer as condições de um crescimento sustentável, capaz de permitir uma forte descida do desemprego.
Falsa evidência n.º 6:
A
DÍVIDA PÚBLICA TRANSFERE O CUSTO DOS NOSSOS EXCESSOS PARA OS NOSSOS
NETOS
A
afirmação de que a dívida pública constitui uma transferência de
riqueza que prejudica as gerações futuras é outra afirmação
falaciosa, que confunde economia doméstica com macroeconomia. A
dívida pública é um mecanismo de transferência de riqueza, mas
é-o sobretudo dos contribuintes comuns para os rentistas.
De
facto, baseando-se na crença, raramente comprovada, de que a redução
dos impostos estimula o crescimento e aumenta, posteriormente, as
receitas públicas, os Estados europeus têm vindo a imitar os
Estados Unidos desde 1980, adoptando uma política sistemática de
redução da carga fiscal. Multiplicaram-se as reduções de impostos
e das contribuições para a segurança social (sobre os lucros das
sociedades, sobre os rendimentos dos particulares mais favorecidos,
sobre o património e sobre as cotizações patronais), mas o seu
impacto no crescimento económico continua a ser muito incerto. As
políticas fiscais anti-redistributivas agravaram, por sua vez, e de
forma acumulada, as desigualdades sociais e os défices públicos.
Estas políticas de redução fiscal obrigaram as
administrações públicas a endividar-se junto dos agregados
familiares favorecidos, através dos mercados financeiros, de modo a
financiar os défices gerados. É o que se poderia chamar de "efeito
jackpot
":
com o dinheiro poupado nos seus impostos, os ricos puderam adquirir
títulos (portadores de juros) da dívida pública, emitida para
financiar os défices públicos provocados pelas reduções de
impostos… Por esta via, o serviço da dívida pública em França
representa 40.000 milhões de euros, quase tanto como as receitas do
imposto sobre o rendimento. Mas esta jogada é ainda mais brilhante,
pelo facto de ter conseguido convencer a opinião pública de que os
culpados da dívida pública eram os funcionários, os reformados e
os doentes.
O aumento da dívida pública na Europa ou nos
Estados Unidos não é portanto o resultado de políticas keynesianas
expansionistas ou de políticas sociais dispendiosas, mas sim o
resultado de uma política que favorece as camadas sociais
privilegiadas: as "despesas fiscais" (descida de impostos e
de contribuições) aumentaram os rendimentos disponíveis daqueles
que menos necessitam, daqueles que desse modo puderam aumentar ainda
mais os seus investimentos, sobretudo em Títulos do Tesouro,
remunerados em juros pelos impostos pagos por todos os contribuintes.
Em suma, estabeleceu-se um mecanismo de redistribuição invertido,
das classes populares para as classes mais favorecidas, através da
dívida pública, cuja contrapartida é sempre o rendimento privado.
Para corrigir de forma equitativa as finanças públicas na
Europa e em França, colocamos em debate duas medidas:
Medida
n.º 12: Atribuir
de novo um carácter fortemente redistributivo à fiscalidade directa
sobre os rendimentos (supressão das deduções fiscais, criação de
novos escalões de impostos e aumento das taxas sobre os
rendimentos…);
Medida n.º 13 : Acabar com as isenções de que beneficiam as empresas que não tenham um efeito relevante sobre o emprego.
Falsa evidência n.º 7:
É
PRECISO ASSEGURAR A ESTABILIDADE DOS MERCADOS FINANCEIROS PARA PODER
FINANCIAR A DÍVIDA PÚBLICA
Deve
analisar-se, a nível mundial, a correlação entre a subida das
dívidas públicas e a financeirização da economia. Nos últimos
trinta anos, favoráveis à liberalização total da circulação de
capitais, o sector financeiro aumentou consideravelmente a sua
influência sobre a economia. As grandes empresas recorrem cada vez
menos ao crédito bancário e cada vez mais aos mercados financeiros.
Do mesmo modo, as famílias vêem uma parte cada vez maior das suas
poupanças ser drenada para o mercado financeiro (como no caso das
pensões), através dos diversos produtos de investimento e,
inclusivamente, em alguns países, através do financiamento da sua
habitação (por crédito hipotecário). Os gestores de carteiras que
tentam diversificar os riscos procuram títulos públicos como
complemento aos títulos privados. E encontram-nos facilmente nos
mercados, em virtude de os governos terem levado a cabo políticas
similares, que conduziram a um relançamento dos défices: taxas de
juro elevadas, descida dos impostos sobre os altos rendimentos,
incentivo maciço à poupança financeira das famílias para
favorecer a capitalização através da poupança reforma, etc.
Ao
nível europeu, a financeirização da dívida pública encontra-se
inscrita nos tratados: com Maastricht, os Bancos Centrais ficaram
proibidos de financiar directamente os Estados, que devem encontrar
quem lhes conceda empréstimos nos mercados financeiros. Esta
"repressão monetária" acompanha a "liberalização
financeira" e gera exactamente o contrário das políticas
adoptadas após a grave crise da década de 30; politicas de
"repressão financeira" (drásticas restrições à
liberdade de movimento dos capitais) e de "liberalização
monetária" (com o fim do regime do padrão-ouro). Trata-se de
submeter os Estados, que se supõe serem por natureza despesistas, à
disciplina dos mercados financeiros, que se supõe serem, por
natureza, eficientes e omniscientes.
Como resultado desta
escolha doutrinária, o Banco Central Europeu não tem por isso
legitimidade para subscrever directamente a emissão de obrigações
públicas dos Estados europeus. Privados da garantia de se poderem
financiar junto do BCE, os países do sul tornaram-se presas fáceis
dos ataques especulativos. De facto, ainda que em nome de uma
ortodoxia sem fissuras, o Banco Central Europeu – que sempre se
recusou a fazê-lo – teve de comprar, desde há alguns meses a esta
parte – obrigações de Estado à taxa de juro do mercado, de modo
a acalmar as tensões nos mercados de obrigações europeu. Mas nada
nos diz que isso seja suficiente, caso a crise da dívida se agrave e
as taxas de juro de mercado disparem. Poderá então ser difícil
manter esta ortodoxia monetária, que carece, manifestamente, de
fundamentos científicos sérios.
Para resolver o problema da
dívida pública, colocamos em debate duas medidas:
Medida n.º 14 : Autorizar o Banco Central Europeu a financiar directamente os Estados (ou a impor aos bancos comerciais a subscrição de obrigações públicas emitidas), a um juro reduzido, aliviando desse modo o cerco que lhes é imposto pelos mercados financeiros;
Medida n.º 15 : Caso seja necessário, reestruturar a dívida pública, limitando por exemplo o seu peso a determinado valor percentual do PIB, e estabelecendo uma discriminação entre os credores segundo o volume de títulos que possuam: os grande rentistas (particulares ou instituições) deverão aceitar uma extensão da maturidade da dívida, incluindo anulações parciais ou totais. E é igualmente necessário voltar a negociar as exorbitantes taxas de juro dos títulos emitidos pelos países que entraram em dificuldades na sequência da crise.
Falsa evidência n.º 8:
A
UNIÃO EUROPEIA DEFENDE O MODELO SOCIAL EUROPEU
A
construção europeia constitui uma experiência ambígua. Nela
coexistem duas visões de Europa que não ousam contudo enfrentar-se
abertamente. Para os social-democratas, a Europa deveria dedicar-se a
promover o modelo social europeu, fruto do compromisso obtido após a
Segunda Guerra Mundial, a partir dos princípios que o mesmo
consubstancia: protecção social, serviços públicos e políticas
industriais. A Europa deveria, nesses termos, ter erguido uma muralha
defensiva perante a globalização liberal, uma forma de proteger,
manter vivo e fazer progredir o modelo social europeu. A Europa
deveria ter defendido uma visão específica sobre a organização da
economia mundial e a regulação da globalização através de
organizações de governação mundial. Como deveria ter permitido
aos seus países membros manter um elevado nível de despesas
públicas e de redistribuição, protegendo a sua capacidade de as
financiar através da harmonização da fiscalidade sobre as pessoas,
as empresas e os rendimentos do capital.
A Europa, contudo,
não quis assumir a sua especificidade. A visão hoje dominante em
Bruxelas e no seio da maioria dos governos nacionais é, pelo
contrário, a de uma Europa liberal, cujo objectivo está centrado em
adaptar as sociedades europeias às exigências da globalização: a
construção europeia constitui nestes termos a oportunidade de
colocar em causa o modelo social europeu e de desregular a economia.
A prevalência do direito da concorrência sobre as regulamentações
nacionais e sobre os direitos sociais no Mercado Único permitiu
introduzir mais concorrência nos mercados de bens e de serviços,
diminuir a importância dos serviços públicos e apostar na
concorrência entre os trabalhadores europeus. A concorrência social
e fiscal permitiu por sua vez reduzir os impostos, sobretudo os que
incidem sobre os rendimentos do capital e das empresas (as "bases
móveis") e exercer pressão sobre as despesas sociais. Os
tratados garantem quatro liberdades fundamentais: a livre circulação
de pessoas, mercadorias, serviços e capitais. Mas longe de se
restringir ao mercado interno, a liberdade de circulação de
capitais foi alargada aos investidores do mundo inteiro, submetendo
assim o tecido produtivo europeu aos constrangimentos e imperativos
da valorização dos capitais internacionais. A construção europeia
configura-se deste modo como uma forma de impor aos povos as reformas
neoliberais.
A organização da política macroeconómica
(independência do BCE face às estruturas de decisão política,
Pacto de Estabilidade) encontra-se marcada pela desconfiança
relativamente aos governos democraticamente eleitos. Pretende privar
completamente os países da sua autonomia tanto em matéria de
política monetária, como de política orçamental. O equilíbrio
orçamental deve ser forçosamente atingido, banindo-se qualquer
política deliberada de relançamento económico, pelo que apenas se
pode participar no jogo da "estabilização automática".
Ao nível da zona euro, não se admite nem se concebe nenhuma
política conjuntural comum, como não se define qualquer objectivo
comum em termos de crescimento ou de emprego. As diferenças quanto à
situação em que se encontra cada país não são tidas em conta,
pois o Pacto de Estabilidade não se comove nem com as taxas de
inflação nem com os défices nacionais externos; os objectivos
fixados para as finanças públicas não contemplam a especificidade
da situação económica de cada país membro.
As instâncias
europeias procuraram impulsionar reformas estruturais (através das
Grandes Orientações de Política Económica, do Método Aberto de
Coordenação ou da Agenda de Lisboa), com um êxito muito desigual.
Como o método de elaboração destas instâncias não é democrático
nem mobilizador, a sua orientação liberal jamais poderia contemplar
as políticas decididas a nível nacional, atendendo às relações
de força existentes em cada país. Esta orientação não pôde
assim alcançar os sucessos incontestáveis que teria, de outro modo,
legitimado. O movimento de liberalização económica foi posto em
causa (com o fracasso da Directiva Bolkestein); tendo alguns países
tentado nacionalizar as suas políticas industriais, ao mesmo tempo
que a maioria se opôs à europeização das suas políticas fiscais
e sociais. A Europa Social continua a ser um conceito vazio de
conteúdo, apenas se afirmando vigorosamente a Europa da Concorrência
e a Europa da Finança.
Para que a Europa possa promover
verdadeiramente o modelo social europeu, colocamos à discussão duas
medidas:
Medida
n.º 16 :
Pôr em causa a livre circulação de capitais e de mercadorias entre
a União Europeia e o resto do mundo, renegociando se necessário os
acordos multilaterais ou bilaterais actualmente em vigor;
Medida n.º 17 : Substituir a política da concorrência pela "harmonização e prosperidade", enquanto fio condutor da construção europeia, estabelecendo objectivos comuns vinculativos tanto em matéria de progresso social como em matéria de políticas macroeconómicas (através de GOPS: Grandes Orientações de Política Social).
Falsa evidência n.º 9:
O
EURO É UM ESCUDO DE PROTECÇÃO CONTRA A CRISE
O
euro deveria ter funcionado como um factor de protecção contra a
crise financeira mundial, uma vez que a supressão da incerteza
quanto às taxas de câmbio entre as moedas europeias eliminou um
factor relevante de instabilidade. Mas não é isso que tem sucedido:
a Europa é afectada de uma forma mais dura e prolongada pela crise
do que o resto do mundo, por factores que radicam nas opções
tomadas no processo de unificação monetária.
Após 1999, a
zona euro revelou um crescimento económico relativamente medíocre e
um aumento das divergências entre os seus Estados membros em termos
de crescimento, inflação, desemprego e desequilíbrios externos. O
quadro de política económica da zona euro, que tende a impor
políticas macroeconómicas semelhantes a países com situações
muito distintas ampliou assim as disparidades de crescimento entre os
Estados membros. Na generalidade dos países, sobretudo nos maiores,
a introdução do euro não suscitou a prometida aceleração do
crescimento. Para outros, o euro trouxe crescimento, mas à custa de
desequilíbrios dificilmente sustentáveis. A rigidez monetária e
orçamental, reforçada pelo euro, concentrou todo o peso do
ajustamento no trabalho, promovendo a flexibilidade e a austeridade
salariais, reduzindo a componente dos salários no rendimento total e
aumentando as desigualdades.
Esta trajectória de degradação
social foi ganha pela Alemanha, que conseguiu gerar importantes
excedentes comerciais à custa dos seus vizinhos e, sobretudo, dos
seus próprios assalariados, impondo uma descida dos custos do
trabalho e das prestações sociais que lhe conferiu uma vantagem
comercial face aos outros Estados membros, incapazes de tratar de
forma igualmente violenta os seus trabalhadores. Os excedentes
comerciais alemães limitaram portanto o crescimento de outros
países. Os défices orçamentais e comerciais de uns não são senão
a contrapartida dos excedentes de outros… O que significa que os
Estados membros não foram capazes de definir uma estratégia
coordenada.
A zona euro deveria, de facto, ter sido menos
afectada pela crise financeira do que os Estados Unidos e o Reino
Unido, pois as famílias da zona euro estão nitidamente menos
dependentes dos mercados financeiros, que são menos sofisticados.
Por outro lado, as finanças públicas encontravam-se em melhor
situação; o défice público do conjunto dos países da zona euro
era de 0,6% do PIB em 2007, contra os quase 3% dos EUA, do Reino
Unido ou do Japão. Mas a zona euro padecia já então de um
agravamento profundo dos desequilíbrios: os países do Norte
(Alemanha, Áustria, Holanda, países escandinavos), comprimiam a
massa salarial e a procura interna, acumulando excedentes externos,
ao passo que os países do Sul e periféricos (Espanha, Grécia,
Irlanda) revelavam um crescimento vigoroso, impulsionado pelas baixas
taxas de juro (relativamente à taxa de crescimento), acumulando
todavia défices externos.
A crise financeira começou, de
facto, nos Estados Unidos, que trataram imediatamente de accionar uma
política efectiva de relançamento orçamental e monetário, dando
início a um movimento de restauração da regulação financeira.
Mas a Europa, pelo contrário, não soube empenhar-se numa política
suficientemente reactiva. De 2007 a 2010, o impulso orçamental
ficou-se timidamente nos cerca de 1,6% do PIB na zona euro, sendo de
3,2% no Reino Unido e de 4,2% nos EUA. As perdas na produção
causadas pela crise foram nitidamente mais fortes na zona euro do que
nos Estados Unidos. Na zona euro, a agudização dos défices
precedeu portanto qualquer política activa, comprometendo os seus
resultados.
Simultaneamente, a Comissão Europeia continuou a
aprovar procedimentos contra os países em défice excessivo, a ponto
de em meados de 2010 praticamente todos os Estados membros da zona
euro estarem sujeitos a esses procedimentos. A Comissão obrigou
então os Estados membros da zona euro a regressar, até 2013 e 2014,
a valores percentuais de défice inferiores a 3%, independentemente
da evolução económica que pudesse verificar-se. As instâncias
europeias continuaram portanto a exigir políticas salariais
restritivas e a regressão sistemática dos sistemas públicos de
reforma e de saúde, com o risco evidente de mergulhar o continente
na depressão e de suscitar tensões entre os diferentes países.
Esta ausência de coordenação e, fundamentalmente, de um verdadeiro
orçamento europeu, capazes de suportar uma solidariedade efectiva
entre os Estados membros, incitaram os agentes financeiros a
afastar-se do euro, preferindo especular abertamente contra ele.
Para que o euro possa proteger realmente os cidadãos
europeus da crise, colocamos em debate três medidas:
Medida n.º 18 : Assegurar uma verdadeira coordenação das políticas macroeconómicas e uma redução concertada dos desequilíbrios comerciais entre os países europeus;
Medida
n.º 19 :
Compensar os desequilíbrios da balança de pagamentos na Europa
através de um Banco de Pagamentos (que organize os empréstimos
entre países europeus);
Medida n.º 20 : Se a crise do euro conduzir à sua desintegração, e enquanto se aguarda pelo surgimento de um orçamento europeu (cf. infra), instituir um regime monetário intra-europeu (com moeda comum do tipo "bancor"), que seja capaz de reorganizar a absorção dos desequilíbrios entre balanças comerciais no seio da Europa.
Falsa evidência n.º 10:
A
CRISE GREGA PERMITIU FINALMENTE AVANÇAR PARA UM GOVERNO ECONÓMICO
E UMA VERDADEIRA SOLIDARIEDADE EUROPEIA
A
partir de meados de 2009 os mercados financeiros começaram a
especular com as dívidas dos países europeus. Globalmente, a forte
subida das dívidas e dos défices públicos à escala mundial não
provocou (pelo menos ainda) uma subida das taxas de juro de longo
prazo: os operadores financeiros estimam que os bancos centrais
manterão, por muito tempo, as taxas de juro reais a um nível
próximo do zero, e que não existe um risco de inflação nem de
incumprimento de pagamento por parte de um grande país. Mas os
especuladores aperceberam-se das falhas de organização da zona
euro. Enquanto que os governantes de outros países desenvolvidos
podem sempre financiar-se junto do seu Banco Central, os países da
zona euro renunciaram a essa possibilidade, passando a depender
totalmente dos mercados para financiar os seus défices. Num só
golpe, a especulação abateu-se sobre os países mais frágeis da
zona euro: Grécia, Espanha, Irlanda.
As instâncias
europeias e os governos demoraram a reagir, não querendo dar a ideia
de que os países membros tinham direito a dispor de um apoio
ilimitado dos seus parceiros, e pretendendo, ao mesmo tempo,
sancionar a Grécia, culpada por ter mascarado – com a ajuda da
Goldman Sachs – a amplitude dos seus défices. Porém, em Maio de
2010, o BCE e os países membros foram forçados a criar com urgência
um Fundo de Estabilização, capaz de indicar aos mercados que seria
dado um apoio sem limites aos países ameaçados. Em contrapartida,
estes deveriam anunciar programas de austeridade orçamental sem
precedentes, que os condenam a um recuo da actividade económica no
curto prazo e a um longo período de recessão. Sob pressão do FMI e
da Comissão Europeia, a Grécia é forçada a privatizar os seus
serviços públicos e a Espanha obrigada a flexibilizar o seu mercado
de trabalho. E mesmo a França e a Alemanha, que não são vítimas
do ataque especulativo, anunciaram medidas restritivas.
Contudo,
globalmente, a oferta não é de nenhum modo excessiva na Europa. A
situação das finanças públicas é melhor do que a dos Estados
Unidos ou da Grã-Bretanha, deixando margens de manobra orçamental.
É por isso necessário reabsorver os desequilíbrios de forma
coordenada: os países excedentários do Norte e do centro da Europa
devem encetar políticas expansionistas (com o aumento dos salários
e das prestações sociais), tendo em vista compensar as políticas
restritivas dos países do Sul. Globalmente, a política orçamental
não deve ser restritiva na zona euro, tanto mais que a economia
europeia não se aproxima do pleno emprego a uma velocidade
satisfatória.
Mas, infelizmente, os defensores das políticas
orçamentais automáticas e restritivas encontram-se hoje em posição
reforçada na Europa. A crise grega fez esquecer as origens da crise
financeira. Aqueles que aceitaram apoiar financeiramente os países
do Sul querem impor, em contrapartida, um endurecimento do Pacto de
Estabilidade. A Comissão e a Alemanha pretendem obrigar todos os
países membros a inscrever o objectivo de equilíbrio orçamental
nas suas constituições e vigiar as suas políticas orçamentais por
comissões de peritos independentes. A Comissão quer impor aos
países uma longa cura de austeridade para que se regresse a uma
dívida pública inferior a 60% do PIB. Se existe algum avanço em
matéria de governo económico europeu, é um avanço em direcção a
um governo que, em vez de libertar o garrote das finanças, pretende
impor a austeridade e aprofundar as "reformas" estruturais,
em detrimento das solidariedades sociais em cada país e entre os
diversos países.
A crise oferece de mão beijada, às elites
financeiras e aos tecnocratas europeus, a tentação de pôr em
prática a "estratégia do choque", tirando proveito da
crise para radicalizar a agenda neoliberal. Mas esta política tem
poucas hipóteses de sucesso, uma vez que:
Para avançar no sentido de um verdadeiro governo económico e de uma verdadeira solidariedade europeia, propomos para discussão duas medidas:
Medida n.º 21 : Desenvolver uma verdadeira fiscalidade europeia (taxa de carbono, imposto sobre os lucros, etc.) e um verdadeiro orçamento europeu, que favoreçam a convergência das economias para uma maior equidade nas condições de acesso aos serviços públicos e serviços sociais nos diferentes Estados membros, com base nas melhores experiências e modelos;
Medida n.º 22 : Lançar um vasto plano europeu, financiado por subscrição pública a taxas de juro reduzidas mas com garantia, e/ou através da emissão monetária do BCE, tendo em vista encetar a reconversão ecológica da economia europeia.
Conclusão
DEBATER
A POLÍTICA ECONÓMICA, TRAÇAR CAMINHOS PARA REFUNDAR A UNIÃO
EUROPEIA
A
Europa foi construída, durante três décadas, a partir de uma base
tecnocrática que excluiu as populações do debate de política
económica. A doutrina neoliberal, que assenta na hipótese, hoje
indefensável, da eficiência dos mercados financeiros, deve ser
abandonada. É necessário abrir o espaço das políticas possíveis
e colocar em debate propostas alternativas e coerentes, capazes de
limitar o poder financeiro e preparar a harmonização, no quadro do
progresso dos sistemas económicos e sociais europeus. O que supõe a
partilha mútua de importantes recursos orçamentais, obtidos através
do desenvolvimento de uma fiscalidade europeia fortemente
redistributiva. Tal como é necessário libertar os Estados do cerco
dos mercados financeiros. Somente desta forma o projecto de
construção europeia poderá encontrar uma legitimidade popular e
democrática de que hoje carece.
Não é evidentemente
realista supor que os 27 países europeus decidam, ao mesmo tempo,
encetar uma tamanha ruptura face ao método e aos objectivos da
construção europeia. A Comunidade Económica Europeia (CEE) começou
com seis países: do mesmo modo, a refundação da União Europeia
passará inicialmente por um acordo entre alguns países que desejem
explorar caminhos alternativos. À medida que se tornem evidentes as
consequências desastrosas das políticas actualmente adoptadas, o
debate sobre as alternativas crescerá por toda a Europa. As lutas
sociais e as mudanças políticas surgirão a ritmos diferentes,
consoante os países. Os governos nacionais tomarão decisões
inovadoras. Os que assim o desejem deverão adoptar formas de
cooperação reforçadas para tomar medidas audazes em matéria de
regulação financeira, de política fiscal e de política social.
Através de propostas concretas, estenderemos as mãos aos outros
povos para que se juntem a este movimento.
É por isso que
nos parece importante esboçar e debater, neste momento, as grandes
linhas das políticas económicas alternativas, que tornarão
possível esta refundação da construção europeia.
NT:
[1] Imitar os outros, perdendo todo o sentido crítico.
O original encontra-se em http://www.assoeconomiepolitique.org/IMG/article_PDF/article_a140.pdf ;
a versão em português em http://passos-perdidos.blogspot.com/
. Tradução de Nuno Serra; revisão de João Rodrigues.